A idealização é inimiga da relação e do pensar

O mote é a genialidade literária de Gabriel e a tosca adesão acrítica, ao longo da vida, de García Márquez à ditadura cubana.

Uma pessoa muito importante na minha formação era extremamente generosa com todos os que o cercavam, mas também autodestrutiva e de uma inconveniência insuportável quando alcoolizado.

Conheço um cirurgião que gostaria de ter a sorte de contar com ele em caso de necessidade cirúrgica, mas tenho pena dos que precisam conviver no dia a dia com as suas indelicadezas e irascibilidades.

Lembro de ensinamentos de professores que foram fundamentais na minha formação, são influências vivas no meu trabalho, apesar de, dolorosamente, identificar características de funcionamento que flertam com a desonestidade intelectual quando estavam envolvidos seus interesses pessoais.

Existem muitos psiquiatras e psicanalistas competentes e dedicados, responsáveis por melhorar a qualidade de vida e dos relacionamentos de uma infinidade de pessoas; contudo, ao olhar-se com cuidado a vida pessoal de alguns, encontramos um caos relacional.

Já tive funcionários incompetentes, mas extremamente fiéis e honestos; sim, também já tive funcionários extremamente competentes, contudo, desonestos.

Temos pais extremamente dedicados a alguns dos seus filhos, mas que negam-se a dar sustento e apoio emocional aos filhos que a “justiça lhe impôs”.

Também é interessante a forma com a qual casais que se separam descrevem os (ex)cônjuges, como se fossem um antes e outro depois, como se todos os elementos não existissem antes. Também podemos pensar sobre partidos políticos na situação e na oposição; as diferenças, as mudanças no discurso e na atitude frente aos mesmos problemas.

A idealização é um jeito infantil de relacionar-se, é a busca mágica da certeza, da previsibilidade; esta forma gesta o maniqueísmo. Muitas vezes fatiamos as pessoas, as instituições, funções de trabalho, cidade nas quais vivemos (…), enxergamos só a parte que nos interessa. Claro que isso se dá à custa de um gasto enorme de energia mental. Precisamos manter a outra metade reprimida e dissociada. Evidentemente que isso não se sustenta. As pessoas que não conseguem elaborar esta questão de forma mais madura passam a sentirem-se enganadas e traídas. Não, tudo estava lá desde o início!

Na verdade, a dificuldade de enxergarmos a realidade e as demais pessoas de forma mais ampla e integradas – mesmo nas suas desintegrações e dissociações – expressa a dificuldade pessoal de olhar-se e integrar as suas contradições, dissociações, incompletudes, incompetências, ambivalências (…) à sua personalidade. Este é um trabalho sem fim. O avanço nos possibilita a gostar da literatura de Gabo, sem precisar ser castrista. Ser grato, sem ser cego. Amar, sem idealizar e, também, suportar-se, sem automutilar-se.

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 19/04/2014, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. 1 comentário.

  1. Já li e reli esse texto várias vezes (numa tentativa frustada de tentar não idealizá-lo) para ver se consigo processá-lo, sem mastigá-lo; amá-lo sem odiá-lo; senti-lo, sem doer; concordar, sem precisar discordar; …

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