Novo Ano e suas Boas (e antigas) Histórias

Parte 1: o preconceito estrutural que nos permeia

Chego ao clube do qual sou sócio há mais de três décadas, apesar de pouco habitue. Aguardam-me filho e nora para almoçarmos. Com meu carro popular, avô da última versão que soube que saiu de linha no famigerado 2020 – que, por sua vez, ainda não sofreu a higienização anual e os reparos quinquenais -, paro na guarita, o porteiro sai, se aproxima, abro o vidro, ele olha para dentro do carro, alguns copos a serem descartados, o banco traseiro virado, terra das plantas que carreguei durante o ano – mais algumas coisitas, que alguns chamam de lixo – e uma raqueteira no banco dianteiro – ali estacionada há 30 dias, desde o último embate-; olha-me, deve perceber meu edema palpebral e o olho vermelho, que poderia ser de qualquer coisa, como saí do trabalho/laser no jardim para o clube, talvez, estivesse um tanto molambento. Então, profere: o senhor é professor? No contexto, seria de tênis. Não, respondo! Um pouco inibido, pergunta, protocolarmente, o meu CPF para identificação.

 Preconceituoso, eu não imaginei que ele poderia ter me visto dando aula aos meus tradicionais oponentes no outro clube (a piada se ofereceu). Perdi a oportunidade de dizer: não, mas para alguns, sou! Ou, simplesmente, dizer que sim, sou professor de psiquiatria licenciado, função que exerci por vinte anos.

Responda rápido, quem estava mais embebido pelo preconceito estrutural?

Parte 2: desconstrução

Quando cheguei, contei a história para o Matheus e Marília que me aguardavam; conversa vai, conversa vem; Marília associa com o período que estudou em Londres, em certo momento, arrumando-se para sair, enquanto se maquiava, a amiga coreana fita-lhe e emenda: você é considerada bonita no teu país?

Em sua beleza, até então, inquestionável, se surpreende com a pergunta; como se sua simples existência implicasse em um juízo de valor. Só depois, percebeu o quão profunda era a questão; além de tudo que temos a aprender com o multiculturalismo.

Parte 3: conclusão (?!)

Oscar Wilde tem um aforismo, como lhe era habitual, provocativo: “só as pessoas muito superficiais não levam em conta as aparências”. Tendo a concordar, mas acrescentaria: só os preconceituosos se atêm exclusivamente às aparências (H. A. Mendes).

Em tempo, todos somos! Nascemos e desenvolvemo-nos neste caldo de cultura. O diferencial está na disposição para reconhecer e enfrentar.

Bom ano!

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 02/01/2021, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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