O modelo quero-quero de parentalidade

Às vezes, para elogiar; não raro, para criticar, utiliza-se a figura da galinha choca e seus pintinhos. Sempre pertos; quando não, embaixo de suas asas. Uma metáfora para mães zelosas, cientes das suas funções. Mas, também, são utilizadas para criticar a superproteção e a origem de pintinhos mimados que, frente a qualquer dificuldade, recorrem ao aconchego das asas/casa da mamãe. Sim, os galos estão de fora. A sua missão encerrou-se naquela rapidinha.

Nas últimas semanas, são frequentadores do meu jardim dois casais de quero-queros e seus quatro filhotes. Via de regra, monogâmicos; eles se acompanham na proteção do ninho, avisando, despistando e dispersando potenciais predadores. Mas o mais interessante de se observar é após o nascimento dos filhotes. Evidentemente, menores que os pintinhos, mas com suas longas pernas, ativos, curiosos e rápidos. Ao olhar para os pais, nãos os vemos, pois nunca estão colados, próximos; se distanciam por dezenas de metros na busca de alimentos. Os pais se mantêm nas linhas de defesas. Geralmente, um na frente e outro atrás.

Nas primeiras semanas, quando eram dois casais, fiquei com a impressão de haver um cuidado conjunto; os dois casais cuidando indistintamente dos quatro filhotes. Em algumas situações, achava que os filhotes ficavam vulneráveis, me angustiava de ver a proximidade da Estela – a gata- e da Luna – a cachorra – dos filhotes; mas, bastava uma aproximação maior, os quero-queros atacavam em uma direção e os filhotes saiam em outra.

Em algumas situações, com pais que me pediam orientação sobre a relação com os filhos, me peguei utilizando uma metáfora esportiva, orientava-os a fazer uma marcação meia pressão por zona, ao invés da marcação “homem a homem” que estavam fazendo. Pois a última não era autossustentável; além de estimular mentiras, dissimulações e/ou, pior, inibição do desenvolvimento. Os não afeitos aos esportes, me perguntavam o que era a marcação meia pressão por zona; hoje, eu responderia (e explicaria) que é a dos pais quero-queros.

Há semanas, tenho pensado de escrever sobre o modelo quero-quero de parentalidade. Mas, algo me inibia, acho que era o risco representados pela Luna e a Estela. Eis que esta semana, soube que a Luna abocanhou um filhote de quero-quero, rapidamente sofreu o ataque dos pais, paralisou com o filhote na boca, a Helena aproximou-se e tirou o filhote, que lépido e faceiro, saiu correndo, já tendo história para contar para seus netos.

O fato me libertou para escrever. No fundo, eu queria escrever sobre o modelo com a ideia de que não havia risco. Impossível, como Guimarães Rosa nos ensinou: “viver é muito perigoso”. Seja para humanos, seja para quero-queros. Não há risco zero. Mas os quero-queros nos oferecem um modelo melhor do que os galináceos. Pelo compartilhamento das funções ente o pai e a mãe no chocar/gestar e no cuidar até a autonomia, com ampla liberdade para o potencial de desenvolvimento.

Nossos sentinelas dos Pampas nos avisam das ameaças externas, mas também nos sinalizam sobre os riscos dos abandonos e das sufocações no cuidado dos nossos desejantes filhotes.

P.S. Toda metáfora é manca!

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 07/11/2020, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.