Efêmeras visitas ou interesseira fidelidade?

Ou Corruíras versus Pombas Rolas.

Sempre gostei de pássaros. Daí, preciso confessar alguns pecados: quando criança, mantinha alguns em viveiros; além de gaiolas com casais de canários e periquitos. Também tive uma arara. Se fosse hoje, um crime inafiançável. Faltava-me educação; a sensibilidade ficou obturada pelos costumes da época e região.
Era o “amor” de um possessivo feudal; acreditava que protegê-los do frio e calor excessivos, alimentá-los e a oferta de água eram o suficiente.
Foram necessários a arara fugir e o sabiá-preto morrer (meus xodós) para que eu percebesse que algo estava mal no modelo.
A vida adulta e seus efeitos colaterais me afastaram dos pássaros. A vida mais urbana, a falta de tempo e, talvez, a culpa pelos crimes de cárcere privado dessensibilizaram o meu olhar.
Há um ano, mudei-me para uma região com muitos pássaros, as margens do Arroio Pelotas. Passei a alimentá-los com uma variedade de grãos. Primeiramente, colocava em um mesmo lugar, eles chegavam, se alimentavam e não se detinham além da conta. Depois, passei a jogar espalhado pelo gramado e ali ficam por muito tempo. Pombas rolas, do mato, cardeais, bem-te-vis, pica-paus, forneiras, sábias, canários, anus entre tantos outros que não reconheço; além dos imponentes quero-queros com suas visitas esporádicas, indiferentes aos alimentos.
Entretanto, nas primeiras semanas da quarentena, diminui a ração, pois estava com pouco estoque. Percebi que as pombas rolas, em muito maior número, permaneceram e os demais escassearam. Depois, mais atento, percebi que elas estavam afugentando os demais pássaros. Era uma fidelidade interesseira, controladora, ciumenta, manipuladora (…); além de grosseira e egoísta.
Com mais tempo em casa, percebi que seu entorno recebia visitas de corruíras (há décadas não as via, eram presença marcantes em meio as flores e arbustos da minha mãe), beija-flores e borboletas. Nenhuma delas estão ali pelo alimento ativamente fornecido. Mas, sim, pelo ambiente criado pelos jasmins do cabo e árabes, pitangueiras anãs, caliandras (…). Ou seja, estas visitas não se dão por uma proposta interesseira, por uma fidelidade viciada e viciante. São visitas efêmeras, frutos da liberdade de escolha. Valorizam o ambiente criado, o trabalho, o cuidado; mas não aceitam o suborno das falsas facilidades.
Seguirei plantando o planejado; conviverei com impermanentes, entretanto, sinceras visitas de borboletas e corruíras. Para estas, terei que dedicar tempo para, a partir do seu canto, procurá-las entre flores e butiazeiros. A qualidade ímpar dessa relação não substituirá a presença dos demais pássaros; mas o insight de que são relações de diferentes naturezas é definitivo.

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 07/06/2020, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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