O familiar idoso como oferenda ao bezerro de ouro

Conviver ou, no meu caso, ter um familiar com um quadro demencial é extremamente difícil, triste, doloroso e, progressivamente, desesperançoso. Quando atinge este estágio, muitas pessoas, em algum momento – me incluo entre elas -, são tomados pelo pensamento que a morte seria uma solução. Afinal, a subjetividade/memória/vida não está mais ali. O “seria melhor para todos” funciona como um anestésico a entorpecer o senso ético que se construiu ao longo da vida, muitas vezes, com a influência decisiva de quem pensamos oferecer em sacrifício.

Basta um sorriso que remete ao passado, um cantarolar automático, um breve reconhecimento (…) para que sentimentos de culpas nos assolem pela existência de tais pensamentos.

Não, em meio a tanta dor, não quero acrescentar mais uma com a moralização de ditas ideias que os assolam em momentos de exasperação. Muitas vezes, dediquei horas tentando aliviar e ajudar as pessoas a não se martirizarem por ter esse tipo de pensamento. São pensamentos que ocorrem concomitantemente com a dedicação, o cuidado, a generosidade (…) com o familiar que tanto amam. A morte, quando ocorre naturalmente, traz alívio e justo sentimento de dever cumprido. Base para se libertar, retomar vida e elaborar, a seu tempo, o luto.

A discussão sobre mortes causadas pelo coronavírus e as que poderão ser causadas pela crise advinda das medidas para evitar o crescimento exponencial da pandemia não pode ser resumida a números. Teremos perdas, maiores ou menores, admitam-se dúvidas sobre se a longo prazo o que seria mais efetivo (pois não temos experiência, séries históricas, nem conhecimento do vírus e suas possíveis múltiplas ondas de transmissão); entretanto, hoje, sabemos quais serão os sacrificados. Eles têm nomes, rugas, cicatrizes, limitações de batalhas passadas. Amamentaram e deram suporte para chegarmos onde chegamos.

Ética e moralmente é indefensável alguém se alvorar a decidir quem pode morrer. Além da pretensa ideia de que isso ficaria sob controle. Abraçarmos a ideia de que idosos (algo sem cara, sem história) morrerão e que isso sempre ocorre, como se fosse uma sequência da história natural da vida, seria uma dissimulação. Progressivamente, assistiremos pessoas que fogem a este perfil; além de não sabermos como o vírus se comportará em comunidades sem as mínimas condições sanitárias.

Como sociedade não teríamos nem o álibi dos participantes de pelotões de fuzilamento; estes, ao menos, individualmente, não sabem se a bala deles era real ou a de festim. Saberíamos quem colocamos na linha de tiro.

Existe uma diferença enorme entre dar apenas cuidados paliativos, não incentivar medidas extremadas para levar a vida além da vida (…) e expormos pessoas a câmaras de vírus fatais para testarmos suas habilidades darwinianas de sobrevivência.

Não ficaremos paralisados; mas, precisamos de um mínimo de tempo para processarmos as decisões, poucas semanas ou até meses, e todas as perdas materiais daí advindas serão mais baratas do que o tratamento das cicatrizes por abrirmos mãos de preceitos éticos, morais e humanistas. Entre eles, velar e enterrar dignamente nossos mortos. Isso nos tornou humanos, isso possibilitou que fossemos mais do que caçadores e coletores e até criássemos uma economia de mercado.

Não retomaremos a condição de humana civilidade destruindo os pilares que a criaram. Demenciados ou não, nossos pais não deveriam ser oferendas a bezerros de ouro.

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 28/03/2020, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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