Arquivo mensal: janeiro 2021

Chorei com Manaus!

Sim, a situação por si só é autoexplicativa. Mas, desde o início da pandemia, percebi que cada um tem seus registros anteriores de traumas, medos, isolamentos. Todos têm seus vírus incubados, basta as resistências baixarem ou as ameaças aumentarem e lá estarão eles a se manifestar.

Ontem, ao assistir um colega narrar a situação em uma UTI de Manaus, frente ao desespero, desamparo, impotência, raiva (…) suscitados, solitariamente, comecei a chorar em uma intensidade fora do habitual.

Concomitantemente, me veio uma lembrança de quando eu tinha dez anos. Em uma tarde de domingo, num feriadão, meu pai e outros familiares sofreram um acidente nas voltas da pequena cidade de Castro, próxima à Ponta Grossa. Num primeiro momento, alguns sobreviventes, entre eles meu pai, foram levados ao pequeno hospital da cidade.

Quando lá chegamos, atropelados pela notícia de outras mortes, vi meu pai em uma cama comum de solteiro, com um equipo e um soro. O caos instalado. Uma senhora, delicadamente, me pediu para que eu aguardasse do lado de fora, ali fiquei; não sei exatamente por quanto tempo, não muito. Até que presenciei ela sair do quarto com o soro e o equipo. Mesmo muito jovem, tomei consciência que ele havia morrido.

Somente, depois de mais de década, já médico, pude pensar e tomar consciência que meu pai havia morrido sem atendimento médico. Não havia médicos no local, não havia estrutura para atender politraumatizados, nem pessoas com capacidade para pensar e operacionalizar um encaminhamento diferente. Todos foram atropelados por uma situação que não estavam preparados.

Sem culpados! Pensei que poderia ser diferente se ele fosse levado à Ponta Grossa, mas, longe de ter a convicção de que isto mudaria o desfecho. Desde a pessoa, que ao passar pelo local do acidente, levou o meu pai para o hospital mais próximo – e guardou a foto de minha irmã que estava com ele e, mais de uma década depois, entregou a ela -, e as demais pessoas que receberam a ele e os outros fizeram o que puderam, dentro do que tinham.

De qualquer forma, a narrativa da morte sem assistência, sem uma chance a mais, foi o elemento pessoal, narcísico, que me fez chorar em uma intensidade além da conta frente ao drama dos pacientes, das equipes, dos familiares (…) em Manaus. Foi isso que acionou o meu vírus latente. Minha pandemia pessoal.

Quase meio século depois, não se pode ter a mesma compaixão com os gestores de todos os níveis – municipal, estadual e federal – de Manaus, cidade sede de uma Copa do Mundo, pelo fato dos pacientes terem morrido por falta de oxigênio.

Pacientes, familiares, equipes, pais de filhos recém-nascidos que estavam em UTIs (…), por décadas, ou até o final de seus dias, assim como eu, terão que lidar com as lembranças e ressignificações de tão traumática experiência.

Como tendência, não tenho um espírito de caçador de bruxas; por outro lado, não devemos confundir o buscar compreensões dos fatos com a indevida complacência com a negligência contumaz e a irresponsável conduta de quem se ofereceu para cuidar da população.

Asfixiar é um procedimento básico de torturadores e seus seguidores; parece que estamos frente ao retorno do reprimido. Estamos sendo governados por quem se imagina, gostaria de ser, ou se identifica Ustra Brilhante.

Laurinha e Benício romperam!

Os ingênuos dirão que foi por uma besteira, o motivo seria insignificante. Os invasivos oferecerão soluções profundamente superficiais e autocentradas. Mas, sim, também teremos os que já passaram pelas dores de um rompimento e entenderão que nada é tão simples quanto parece.

Eles são primos, se adoram e se procuram o tempo todo; em tempos de pandemia, as dores do distanciamento os fizeram esquecer o quanto, também, às vezes, o ódio surgia das profundezas; criando momentos nos quais só a inexistência do outro seria a solução.

Vamos aos fatos! Brincavam animadamente, até que um utilizou a palavra pédio para caracterizar o lugar que estavam. O outro corrigiu, não é pédio é pédio. Assim eu escutei quando ouvia a narrativa. Fiz uma cara de estranheza, do tipo, qual é a diferença. Neste momento, só Laurinha, um ano mais nova do que o primo, estava presente, e me esclareceu: é pédio e, com indisfarçável superioridade, certeza e, até, com certo deboche, na ponta dos pés – o que lhe aumenta em 50 cm a altura e ao infinito o poder – expõe e ridiculariza o primo: o Benício acha que é pédío.

Segui sem perceber a diferença, quando ela, já com a irritação dos justos incompreendidos, acentua o “í” com o acento agudo. Alguns que não entendem tudo que estava em jogo poderiam dizer que é o melhor exemplo do narcisismo das pequenas diferenças. Quando ela percebeu que compreendi a diferença, sem que ela falasse, li seus pensamentos: aff, só o que me faltava era mais um como o Benício.

Se a sororidade está na pauta do dia, como um conceito para aproximar e ajudar as mulheres a se apoiarem com solidariedade e empatia; apesar de saber o quão teimoso, cabeça dura é o Benício, o fato de eu sofrer o impacto do olhar da Laurinha na simples descrição da briga, me suscitou um sentimento de “fraternidade” pelo o meu afilhado; como ele, eu sei o que é enfrentar as certezas das mulheres da família, principalmente, quando estão na ponta dos pés e olham de cima para baixo.

Mas, como se sabe, em brigas como estas, terceiros devem se manter abstinentes. Segundo relatos, depois de uma repetição de umas 10 vezes de “- é pédio!; – não, é pédío!”, cada vez mais exaltados, ambos escorregaram para incivilidade. Foram separados e assim estão; cada um com sua razão.

Ninguém sabe quanto tempo demorarão para descobrir que o mais importante “não é ter razão, mas, sim, ser feliz”, Ferreira Gullar, de quem a frase é adaptada, demorou quase 7 décadas.

Os simplistas da família acham que tudo poderia se resolver dizendo que os dois estão errados, que o certo é prédio e ponto, assunto encerrado. Mas, ninguém teve coragem de enfrentar a Laurinha na ponta dos pés e o Benício bicudo.

Também tivemos os afoitos que concluíram que a tensão é um reflexo sobre eles do mundo que vivemos. Tendo a pensar diferente, o mundo que vivemos é um reflexo das seculares brigas de Laurinhas e Benícios não elaboradas vida afora.

Torço pela reaproximação de ambos; já, quanto à humanidade, sou pessimista em relação a“O Futuro de uma Ilusão”. “O Mal-estar … ” está “Além do Princípio do Prazer”, ou seria aquém?

Novo Ano e suas Boas (e antigas) Histórias

Parte 1: o preconceito estrutural que nos permeia

Chego ao clube do qual sou sócio há mais de três décadas, apesar de pouco habitue. Aguardam-me filho e nora para almoçarmos. Com meu carro popular, avô da última versão que soube que saiu de linha no famigerado 2020 – que, por sua vez, ainda não sofreu a higienização anual e os reparos quinquenais -, paro na guarita, o porteiro sai, se aproxima, abro o vidro, ele olha para dentro do carro, alguns copos a serem descartados, o banco traseiro virado, terra das plantas que carreguei durante o ano – mais algumas coisitas, que alguns chamam de lixo – e uma raqueteira no banco dianteiro – ali estacionada há 30 dias, desde o último embate-; olha-me, deve perceber meu edema palpebral e o olho vermelho, que poderia ser de qualquer coisa, como saí do trabalho/laser no jardim para o clube, talvez, estivesse um tanto molambento. Então, profere: o senhor é professor? No contexto, seria de tênis. Não, respondo! Um pouco inibido, pergunta, protocolarmente, o meu CPF para identificação.

 Preconceituoso, eu não imaginei que ele poderia ter me visto dando aula aos meus tradicionais oponentes no outro clube (a piada se ofereceu). Perdi a oportunidade de dizer: não, mas para alguns, sou! Ou, simplesmente, dizer que sim, sou professor de psiquiatria licenciado, função que exerci por vinte anos.

Responda rápido, quem estava mais embebido pelo preconceito estrutural?

Parte 2: desconstrução

Quando cheguei, contei a história para o Matheus e Marília que me aguardavam; conversa vai, conversa vem; Marília associa com o período que estudou em Londres, em certo momento, arrumando-se para sair, enquanto se maquiava, a amiga coreana fita-lhe e emenda: você é considerada bonita no teu país?

Em sua beleza, até então, inquestionável, se surpreende com a pergunta; como se sua simples existência implicasse em um juízo de valor. Só depois, percebeu o quão profunda era a questão; além de tudo que temos a aprender com o multiculturalismo.

Parte 3: conclusão (?!)

Oscar Wilde tem um aforismo, como lhe era habitual, provocativo: “só as pessoas muito superficiais não levam em conta as aparências”. Tendo a concordar, mas acrescentaria: só os preconceituosos se atêm exclusivamente às aparências (H. A. Mendes).

Em tempo, todos somos! Nascemos e desenvolvemo-nos neste caldo de cultura. O diferencial está na disposição para reconhecer e enfrentar.

Bom ano!

Os Profissionais do Ano

Profissões são como órgãos, estruturas, hormônios, nutrientes, sais minerais (…) em um ser vivo; elas formam uma corrente, engrenagem, na qual basta uma falha (ou falta) para que todo o processo desande. Entretanto, às vezes, determinadas situações nos lembram das importâncias de funções não percebidas adequadamente, vivem nas sombras; quando não, passam por um processo de ativa desvalorização.

Tivemos um ano atípico, com muitas pessoas querendo trabalhar e não podendo; outras tomadas pelo medo, simplesmente, não conseguiram. Algumas puderam ter o luxo de escolher o que fazer, ou não atuarem. Contudo, também tivemos as sem escolhas; foram convocadas, exigidas, sobrecarregadas, sugadas, adoecidas, quando não, mortas pela pandemia.

Semana passada, por uma questão de saúde, passei dois dias no mundo que é a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. De tempos em tempos, seria importante que todos pudessem vivenciar as entranhas de certas estruturas. Evidentemente, médicxs e enfermeirxs são personagens fundamentais, chaves em um hospital. Via de regra, vamos ao encontro deles nos hospitais.

Mas vamos olhar além, ou, talvez, aquém. Para chegarmos nos médicos e enfermeiros, passamos por porteiros, recepcionistas, ascensoristas, telefonistas e pelos incansáveis da higienização. Entregadores chegam com alimentos, moto taxistas e suas múltiplas funções também estão lá. Técnicos de enfermagem, laboratoristas, bioquímicos, circulantes, instrumentadores. Assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, acompanhantes terapêuticos, farmacêuticos, cozinheiras, cuidadores (…) e, sim, os profissionais das funerárias. Perdoem-me os esquecidos, mas se considerem no espírito da lembrança.

Todos, mais ou menos, estão expostos às insalubridades de um ambiente hospitalar. Que vão muito além dos vírus e bactérias que nos assustam de tempos em tempo. São as dores, as angústias, o desespero, medo, desesperanças, ignorância (…) e mortes os principais agentes intoxicantes. O que, bem antes da pandemia, faz com que os profissionais que trabalham próximos às doenças e mortes sejam mais acometidos por morbidades e/ou mortalidade do que a população em geral.

Gracias pela misericórdia, beneficência, empatia, continência, paciência, tolerância, cuidado… pela vida!