Arquivo mensal: janeiro 2020

Podemos zoar a fé e a orientação sexual alheia?

Responda rápido: no especial de final de ano do Portas dos Fundos, quem é mais grotescamente ridicularizado(a): a fé cristã ou os homossexuais?

É antigo o costume de atribuir uma homossexualidade latente, enrustida (…) quando alguém tem um comportamento homofóbico. Não raro, utiliza-se esta inferência para atingir o preconceituoso. Quando isso ocorre, no fundo, pensa-se a homossexualidade como uma coisa negativa; pois é usada para ofender. O episódio flerta com essa ideia.
Seria mais adequada a simples adjetivação de ignorante/preconceituoso. Independente da orientação, pois eles existem em todas as orientações.

A meu ver, a sacada é interessante – longe de ser original, os filmes A vida de Brian e A Última de Tentação de Cristo já estiveram por aí. Os diálogos são pobres, poderiam ser um pouco menos caricatos e mais sofisticados. Talvez um indicativo de como é difícil acertar a mão quando o assunto é sexualidade e fé.

A retratação da homossexualidade afetada do nazareno é caricata e ridiculariza, igualmente, a meu ver, os homossexuais e os dogmas da fé relacionado ao vivente chamado Jesus.

Talvez, a diferença seja que já estamos acostumados com a caricatura em relação aos primeiros, a ponto de não se atentar que eles são tão satirizados como a fé cristã no especial. Ou, pior, que eles merecem ser ridicularizados; diferentemente, da fé religiosa, sagrada ao narcisismo de cada fiel.

Penso que deveríamos ser cuidadosos com a fé alheia, assim como a orientação sexual de cada um. Porém, muitos religiosos não percebem o quanto o seu comportamento evangelizador, moralizador, invasivo e as inferências sobre quem não compartilha dos seus preceitos são agressivas. Como acreditam ser possuidores da verdade e da bondade, se autorizam a emitir juízo de valor sobre a vida alheia. Daí, as reações que se retroalimentam.

Last but not least, o juiz carioca que proibiu a apresentação conseguiu ser mais grotesco, caricato e pobre do que o episódio e todas as reações a ele.

Os Whites, a abstinência sexual e a Ministra Placidina

Convivi muito próximo de uma família; ou melhor, dentro de uma família, talvez, se alguns não pudessem querer me excomungar, eu até diria que é a minha família. Deixemos assim, aqui chamarei de família White.

Pensem na seguinte estrutura: bisavó, avó, mães, filhos(as) e netos(as). Sim, quase um matriarcado. Há uns 80 anos, a bisavó, converteu-se e, consequentemente, passou a influenciar o seu entorno a seguir uma religião evangélica, surgida nos Estados Unidos no século 19.

Algo que aconteceu com a avó e suas respectivas filhas. A religião da família White, Cristã Protestante, entre seus vários preceitos, “incentiva e preza a virgindade para homens e mulheres antes do casamento”. Uma forma eufemística para dizer que condenam caminhos diferente; pois, os jovens, quando comprovado que caíram em tentação, eram excluídos (algo muito sério) da igreja.

Os Whites eram fervorosos, mas, convenhamos, as tentações não eram pequenas. Não, não! Ninguém foi condenado por matar, roubar, desonrar o pai e a mãe, (…). Mas o diabo, ou melhor, a macieira dos Whites, estava no maldito sexo.

Não, não me considerem leviano, falo com a comprovação dos resultados positivos para gravidezes um pouco antes dos casamentos. Que, com um pouco de sorte e celeridade, eram realizados ainda antes das cinturas ficarem comprometidas. Isso ocorreu com vários, talvez a maioria da geração das mães e filho(as).

Tenho profundo respeito pelos Whites, devo pouco mais que a vida a eles. Não eram culpados. Só estavam seguindo preceitos equivocados. Ao invés de se apropriarem das respectivas sexualidades, e avançarem no conhecimento da natureza dos seus desejos e dos seus corpos, eles tentavam reprimir. Contudo, eles estavam no direito de tentar seguir os preceitos da sua fé. Isso não é pecado.

Da mesma forma, a pastora Damares tem o direito de fazer tal pregação na sua congregação, ou algo que o valha, por mais que, também, não vá funcionar. Já como ministra, sua ignorância deveria receber vacinas. Sinceramente, não acho que ela seja culpada, ela é inimputável. Ela não tem insight para saber que está num cargo para o qual não tem competência. Ela defende o que acredita, com as boas intenções do conhecido dito popular.

Os responsáveis são os que permitem que ela se mantenha como ministra (eles são muitos, não só o que formalmente nomeia). Ela funciona como uma boba da Corte. Num ministério pouco glamoroso, sem muito interesse econômico; assim, suas bobagens atraem holofotes e tira a luz de outras questões. Entretanto, o preço disso são mais gestações na adolescência, aumento das DSTs, culpas, evasão escolar precoce, perdas de perspectivas e abandono dos jovens que tentarem seguir os caminhos proposto pelas diretrizes do Estado, que deveria ser laico e protetor.

Voltemos aos Whites, hoje, muitos das gerações dos netos são mais velhos do que seus pais/mães e avós eram quando tiveram os primeiros filhos. Seguindo ou não à vinculação com a religiosidade familiar, as gestações precoces praticamente desapareceram. Claro, que a maioria (para dar o benefício da dúvida sobre alguns) não tem como objetivo manter a castidade até o casamento. Aliás, tampouco querem casar-se cedo ou formalmente. A vivência plena de uma sexualidade bem elaborada é o santo remédio.

Placidina era a bisavó dos Whites, nasceu no século 19. Hoje, ela teria a idade das ideias do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Pena que, como mulher à frente de seu tempo, ela jamais aceitará ser Ministra (sim, no caso, seria com M).

Os dois papas: um belo exemplo

Há pouco minutos, assisti Os Dois Papas de Fernando Meirelles e Anthony McCarten. Como todo filme, podemos mirar de diversos ângulos.

O encontro inicial entre Bento XVI e Bergoglio apresenta um diálogo instigante, cheguei a pensar que o embate escorregaria para uma esgrima entre sofistas. Abençoado engano!

Num mundo dividido, no qual a verdade é insignificante; e o que interessa é lacrar o oponente, jogo no qual, não raro, escorrega-se para um diálogo entre surdos; o filme apresenta um santo remédio: escutar, tentar se colocar no lugar do outro!

Os diálogos são inteligentes, perspicazes, apesar de perspectivas diferentes. Muitos confundem inteligência com honestidade intelectual. Quando frequentemente a inteligência é utilizada a serviço da desonestidade. Este me parece o aspecto mais bonito do filme. Os personagens – para mim é insignificante o que é retratação da história ou simples estória, ambas são produções da mente de alguém – buscam se integrar.

Não sepultam, escondem (…) – ao menos naquele retalho de tempo – seus deslizes, suas fraquezas, vaidades; enfim, as humanidades não ficam atrás das batinas, posições (…).

Esta disposição intelecto-afetiva é um caminho (…). Não tem ponto de chegada, foi sob esta perspectiva que pensei a renúncia do papa. Sempre se pode mudar. No meio do caminho, percebeu que era mais honesta a renúncia, estava ficando cego e surdo do ouvido esquerdo (bela metáfora). Sob esta perspectiva, é indiferente se foi porque não se sentia mais em condições, se foi uma decisão política ou se fosse para procurar uma cantora de cabaré berlinense que conhecera durante a segunda guerra.

No modelo religioso católico se tem a figura da confissão como busca do perdão. Entretanto, no filme, de maneira sutil, deixa clara a necessidade de uma elaboração interna. Só assim, os viventes diminuem o calor do inferno pessoal.

Ah, sim, ontem, depois de ler muitos comentários sobre o tapa que o Papa deu em uma fiel, assisti a cena. Triste, entretanto, a utilização da situação para fazer paralelo e atenuar atos de agressões às mulheres, outras grosserias e demais vulgaridades que vicejam no nosso dia a dia são uma clara demonstração de desonestidade intelectual.

Não temos santos. O que não deixa de ser uma boa notícia. As religiões são filhas da cultura, apresentam o DNA de todas as contradições humanas. Estão na origem de boa parte das guerras; mas, também, muitas vezes, nos brindam com pessoas interessantes que ajudam a pensar a barbárie humana.

P.S. Antes de assistir, li críticas que consideravam o filme favorável ao personagem retratado como Francisco I em detrimento ao de Bento XVI. A meu ver, o filme é equilibrado. Os dois personagens apresentam complexidades e tomadas de posições interessantes. Sim, óbvio, falo do filme.