Nosso nome: estímulo e condenação

A propósito da morte de Gabriel García Márquez, lembrei-me e escrevi para a minha filha, que quando li “Cem anos de solidão”, alguns anos antes do seu nascimento, fantasiei seriamente sobre a plausibilidade de dar o nome de Remedios, para a minha primogênita. Foi quando associei que minha mãe também contou-me que planejará nomear-me Pitágoras.

Eu e minha filha escapamos das boas intenções da mãe e do pai, respectivamente. O pai, no caso eu, encantado com a personagem Remedios – a bela filha de Aureliano, fantasiava em emprestar junto com o nome os atributos a futura filha. Minha mãe associava o nome do filósofo e matemático à inteligência, imaginava que já seria meio caminho andado. O nome é um dos primeiros atos que veicula carinho/agressão, estímulo/cobrança, herança/dívida (…) à criança.

A partir de muitos nomes podemos inferir o nível sociocultural das famílias, os interesses e as expectativas. Sem entrarmos na discussão do ônus/bônus dos sobrenomes. Temos ondas de nomes associados a personagens de novelas, jogadores de futebol, músicos, até a políticos. O seriado Dallas nos deixou as Jenifers e Suélens, com suas mais variadas grafias, por falar nisso, o que dizer das inúmeras versões de Michel, quanta informação!

Para mim nada mais emblemático do que a lista de nomes dos pacientes que já haviam hospitalizado no Sanatório em que fiz parte da minha formação, ela trazia os nomes por ordem alfabética do primeiro nome. Era impressionante a repetição na lista de nomes relativamente raros. Mulheres que o primeiro nome era “Santa”, o segundo poderia ser Terezinha, Maria, de Jesus, Edwiges (…) eram disparadas as que tinham uma incidência na lista muito acima da amostragem da população geral. Já os homens, “Fulado de Deus” ou “de Jesus” apresentavam uma incidência desproporcional, além das variações mais raras, como Deuzinho, Santa Maria de Jesus (…). Evidentemente, não era o nome que influenciava no desfecho de apresentar, em algum momento, uma sintomatologia psiquiátrica importante. Mas os nomes já diziam algo sobre o funcionamento familiar, sobre as expectativas, sobre a rigidez, o fanatismo, os valores, (…) dos pais, que por sua vez, já tinham sido criados em ambientes semelhantes, sem contar com a inferências sobre as predisposições herdadas.

Estes são exemplos caricatos, mas todos os nomes trazem uma história, eles são heranças transgeracionais, são os resultantes do caldo de cultura familiar. Quem recebe não fica imune a isso, pode sair-se bem, pode ser um estímulo, ou pode ser um fardo. Receber o nome do pai, do avô, de pessoas que morreram, de gênios, de craques, ou outras homenagens de gosto duvidoso, nada passa batido.

Para terminar, muitas escolhas – a maioria – são inconscientes, não são percebidas por quem nomeia, o que não quer dizer que isso seja indiferente e inócuo. Minha filha escapou de receber o nome de Remedios, ganhou Marina de presente, só algum tempo depois o Ari, no meio do nome, começou a gritar no meu ouvido, algo claramente associado ao meu pai. Igualmente, sem esta consciência, minha irmã deu o nome de Catarina e Maria para suas filhas. Com H, era o acréscimo que eu tinha que fazer ao dizer o meu nome. Provavelmente, a minha mãe quis dar um ar de certa “sofisticação” ao meu nome. Eu, por sua vez, condenei ao Matheus e ao Raphael a terem que fazer o mesmo complemento ao anunciarem-se.

Recebemos/impomos uma herança para ser carregada após o nascimento muito maior do que enxergamos. A criança/jovem/adulto vai ter o trabalho de emprestar/criar/desenvolver a própria cara ao nome que lhe foi dado/imposto.

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 18/04/2014, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. 1 comentário.

  1. Na vida não tem almoço de graça.
    E o sanatório é logo ali….

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