A economia nos campos de concentrações!

Desde que começaram os embates entre salvar vidas ou a economia, muitas vezes, quase obsessivamente, sou tomado por uma cena – se não me falha a memória – do filme O Pianista.

Todos estão presos, é indiferente se a caminho ou já num campo de concentração. Um menino caminha entre os adultos com um tabuleiro no pescoço e algumas balas (ou algo equivalente) e repete feito um autômato o valor de cada iguaria. Seu automatismo mostra o congelamento dos seus afetos. Um adulto, entre a irritação e o sarcasmo, pergunta o que ele fará com o dinheiro. O menino, com sua blindagem emocional impenetrável, repete, repete, repete o valor da guloseima. Afinal, a economia não pode parar. (esse é o registro na minha memória; claro, sujeito deturpações e/ou outras interpretações).

Difícil pensar nessas situações sem escorregarmos em um moralismo tacanho. A cena condensa a imagem dos judeus famintos, com restrições, sendo encaminhados para a morte; mas, também, pode-se pensar que o pobre menino mercador reforça a narrativa nazista de judeus vorazes, aproveitadores. Não, não e não! Entrar neste brete com uma única encruzilhada é perder a capacidade de pensar. Estamos longe de estarmos frente à escolha de Sofia.

Escrevo no tempo que estaria atendendo. Sinto-me angustiado com a situação econômica da minha família, dos que me cercam e do resto da humanidade; pois, mais do que nunca sabemos que espirros na Ásia repercutem no andar da carroça da economia de Canguçu (quem é da província já ouviu falar no município com o maior número de minifúndios do Brasil).

Nunca foram tão pródigas as informações sobre quantos morrem disso, daquilo ou daquele outro. Como se as mortes que habitualmente ocorrem, também, muitas preveníveis, justificassem uma tolerância com o natural abate de idosos. Não, definitivamente não. Cada vida salva será o capital intelectual, afetivo – quiçá biológico – para nosso processo reorganização, reconstrução econômicas, além das elaborações emocionais.

Ignorantemente, durante um tempo, imaginava a economia como sendo da área das exatas. Não, economia é das humanas. Portanto, é falso o dilema economia ou vidas. Sim, as derrocadas econômicas matam. Mas, daí, pensar que podemos oferecer/tolerar o sacrifício de uma vida pelo bem da economia é equivalente a fechar os olhos ás mortes que podem ocorrer com rompimento de barragens que prejudicariam a economia e as ações na bolsa de uma mineradora. Lembram?

São as vidas que cedo ou tarde farão a economia rodar. No momento, tanto quanto é possível, temos a opinião quase consensual dos cientistas que devemos seguir a quarentena. A maioria poderá estar equivocada? Sim, mas é menos provável. Se isso acontecer nos encaminharemos para a construção de um novo consenso. Não podemos impedir que quem não está em desacordo com o que a maioria pensa deva deixar de pensar e se manifestar. Porém, não pode querer impor sua visão. Seja quem for.

Na dúvida (será que cabem certezas no momento?),  seguir o consenso dos especialistas parece o razoável. Eles não dependem de votos. Há anos estudam. São treinados a analisarem as coisas de forma científica; além de vacinados contra a imposição dos desejos na análise dos fatos.

A ideia de construção de consensos dinâmicos, com a manutenção dos ouvidos abertos e da capacidade de pensar são os principais instrumentos para encontrar a hora aproximada de fazermos novos movimentos.

Afinal, como nos ensinou Manoel de Barros, “o esplendor da manhã não se abre com faca”.

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 25/03/2020, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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