Arquivo mensal: janeiro 2014

Amantes, aparelho de som e a Presidência da República

François Hollande, presidente francês, está enredado com a amante e a ex-amante, atual esposa, ou, talvez, ex-esposa. Já os franceses estão mais preocupados com sua inabilidade para ocupar a presidência, do que a sua in/(h)abilidade para lidar com as ex e atuais amantes/esposas. Outro François, o Mitterrand, governou a França por 14 anos e manteve a relação com uma amante, com quem tinha uma filha e ninguém foi guilhotinado. No seu velório lá estavam esposa e amante, lado a lado. É um reflexo cultural de como se lida com os fatos da vida privada no país.

Atualmente, um presidente americano teria dificuldade de eleger-se ou manter-se no cargo em uma situação como esta sem que o caos se instalasse.

No Brasil a tendência e não trazer a vida privada amorosa dos presidentes para o debate. Nem Maluf, que é Maluf, trouxe Dona Antônia, a secretaria amante de Tancredo, à disputa no Colégio Eleitoral. Ruth Cardoso não queria que FHC fosse candidato por medo que a vida privada do casal – leia-se o affair ente FHC e a jornalista Miriam Dutra – viesse à tona. Já Rosemary só entrou em cena, com insinuações sobre um suposto caso amoroso com Lula, por ter extrapolado o papel de simples caso amoroso. Vemos que as relações extraconjugais não pertencem à direita ou à esquerda, situação ou oposição. Creio que podemos pensar sobre o tema sem insinuações utilitaristas.

Teve um político que rompeu com este pacto de silêncio, ou melhor, utilizou o pacto de silêncio para chantagear em um debate. Foi Collor no último debate com Lula. Não vou discutir o papel do resumo apresentado pela Globo após o debate. Mas é fato que Lula apresentou-se aquém dos seus desempenhos anteriores. Tinha um aparelho de som no meio do caminho. Sim, aquele que o Collor disse que não tinha em sua casa. A frase incompreensível, aparentemente fora do lugar, fazia sentido para Lula. Na semana anterior, Collor já tinha trazido a baixaria do caso Luriam, portanto, ele já sinalizara que poderia descer mais um pouco na lama.

Antes do debate, espalhou que mostraria a foto de Lula com sua amante da época da Constituinte, Lula sabia que havia fotos suas com ela, que ele havia tirado junto com colegas que agora estavam do outro lado na campanha. E também sabia que sabiam que ele tinha comprado um inocente aparelho de som com o qual presenteou seu affair. Portanto, Lula sabia do que Collor estava falando. Tudo isso é história, apesar de estranhamente não ser muito comentado como motivo para o engessamento de Lula no debate. Convenhamos que, neste sentido, o posicionamento de Hollande é uma aula. Ele foge do fumei, mas não traguei. Tampouco, esconde-se atrás da discussão a lá Clinton, se sexo oral é sexo.

O acovardamento de Lula naquele debate, a sua dificuldade de posicionar-se frente a um chantagista de quinta, não o ajudou, como se viu, a alcançar a presidência naquele momento. “É uma mera negativa biológica”, apesar de nobre a resposta de FHC ao resultado que indicava que ele não era o pai biológico do filho da Miriam Dutra, ela não anula que ele precisou manter escondido um filho que acreditava ser seu. Difícil saber quem foi mais pusilânime nesses casos. Trago para pensarmos, não as amantes, mas a dificuldade de integrar a verdade dos atos a cena pública.

Nossos candidatos não têm autonomia emocional para responder: não interessa, isso é minha vida privada. Sou a favor do aborto. Sou a favor da privatização do serviço de engraxates, ou dos bancos. Sou ateu. Sou homossexual. Sou católico e umbandista (…). Os candidatos não têm mais posições, são marqueteiros com seus grupos de discussões temáticas que definem as posições.

Os verdadeiros líderes devem poder bancar as suas posições, mesmo quando estas vão de encontro à momentânea posição da maioria da população. Se assim não for, eles estarão condenados a um conluio com a mediocridade. Sabemos que em tratamentos analíticos e psicoterápicos a busca pela verdade factual e emocional é um dos alicerces imprescindível para bons desfechos. A verdade das convicções é mais autossustentável politicamente, do que engodos eleitoreiros.

* A história do debate está em um livro do Gilberto Dimenstein, que contava a história da campanha de 89. Foi um dos empréstimos que não voltou, não lembro do título. Posteriormente, tive a oportunidade de checar a história com pessoas próximas ao acontecido.

Descobri quem realmente é Rafael Nadal

Fui escolhido para ter o insight denunciatório de quem é esse que se faz passar por jogador de tênis. Foi em meio à frustração, à irritação, ao cansaço, ao desânimo e à humilhação que o Nadal impôs a mim na última partida contra o Federer. Ah, sim, por que impôs a mim, e não ao Federer? Porque quando focam nele após salvar um break point, ele olha para a câmera e tenho certeza que me dirige a seguinte mensagem: toma secador!
Foi após um game que ele fez tudo isso e no intervalo arrumou as garrafinhas, procrastinou o início do próximo game e fez todos os rituais obsessivos que lhe são característicos, que recebi o esclarecimento de quem realmente é este cara. Já adianto que ele não é apenas um. Vejamos alguns:
• Ele é o tio milionário que sinaliza que está morrendo e quer te deixar toda a herança, só solicita que você acompanhe-o nas últimas horas, depois de 20 anos de dedicação, ele segura a alça do caixão no teu sepultamento.
• Ele é o irmão com quem tu divides o banheiro, quando você está muito apressado, ele entra para fazer a sua higiene matinal de 1 hora e 48 minutos.
• Ele é aquela mulher que fica dando bola para ti, aparentemente está tudo encaminhado, você faz todos os investimentos – afetivos, físicos, de tempo e financeiros – na conquista, quando estás confiante que tudo está encaminhado, ela te convida para mais um quinto set, sem direito a tie break, só para denunciar a tua impotência.
• Ele é aquele vizinho fanático religioso, para o qual nascimentos e mortes, alegrias e desgraças, riqueza e pobreza, sol e chuva (…) são repetidos como prova das suas convicções. Não adianta querer mudar a direção da bolinha, digo do assunto, ela sempre virá alta no teu ouvido esquerdo.
• Ele é primo que quando percebe que pode ter recebido um troco a mais na padaria, coloca rápida e naturalmente o dinheiro no bolso, tudo isso, sem a menor culpa, afinal, este não é um problema seu. Sim, ele olhará com cara de indignação caso seu troco for duvidoso para menos.
• Ele é a moça de vestido curto, com caras e bocas, que enquanto puxa e arruma à calcinha fazendo barulho, o comparsa rouba a tua carteira.
• Ele é o colega de aula que sempre diz que não está bem preparado para aquela prova, mas incrivelmente sempre tira dez.
• Ele é o crente que personifica a fé e a esperança na vitória.
• Ele é o São Tomé frente aos mais iminentes sinais de derrota.
• Ele é só mente (e) físico.
Recebi passivamente estas, entre outras, informações. Foi quando resolvi perguntar se ele não era o colega de poker que sempre ganha e que anos mais tarde se descobrirá que jogava com baralho marcado, porém, imediatamente, os sinais desapareceram.
Assustado com a experiência sensório/intelecto/espiritual, resolvi conversar com meu analista para assuntos tenísticos, meu professor Mauro Brandão. Contei-lhe detalhadamente o ocorrido, depois de escutar-me atentamente, serenamente pergunta-me: não te ocorreu que ele pode simplesmente ser o melhor!
Ele não me falou, mas eu senti nas entrelinhas, que ele achou que toda esta história era um delirante produto do meu ciúme, da minha inveja, da minha incapacidade de tolerar alguém com tamanha capacidade mental de sair das adversidades. Contudo, mesmo desconfortável, respondi de imediato: jamais, de forma alguma, domingo vai dar Wawrinka!

Sex shop e a repressão da sexualidade

Qualquer guia de turismo sobre Paris, Amsterdam, Hamburgo incluem sugestões de visitas a Pigalle, Red Line District e Reeperbahn , respectivamente. Os vários sex shops, teatros e museus com temática sexual, além dos cabarés, são os principais atrativos. Aparentemente, muitas pessoas se permitem visitar algumas destes locais por terem uma conotação turística, como se isso dissimulasse o interesse sexual.
Acho interessantes os sex shops. Eles apresentam restrição de entrada a menores, mas os “brinquedos” que vendem são os mesmos que se têm acessos em outros lugares bem “familiares” e sem nenhuma restrição. Vejamos:
• As revistas são as mesmas encontradas nas bancas que as crianças compram gibis do Pateta.
• Os filmes não são tão diferentes dos que estão expostos atrás das prateleiras dos filmes da Disney nas videolocadoras.
• Algemas, chicotinhos, plumas (…) são os mesmos vendidos para as crianças nos camelôs.
• As lingeries poderiam fazer parte das vitrines das Lojas Marisa, além de serem excessivas, se utilizadas por algumas modelos no carnaval.
• Alguns óleos, géis, pomadas, aromatizantes, camisinhas (…) são encontrados nas farmácias, geralmente, estão entre tintura para cabelo e chás emagrecedores.
• As roupinhas de colegiais são sobras encalhadas do uniforme das estudantes da novela Carrossel. As de enfermeira e de freira pode se fazer combinando a última coleção da c&a.
• Um consolo ali – que deve usar a mesma plataforma industrial de alguns tubos de desodorantes – um baralho com posições do Kama Sutra acolá – que são encontrados em boas encadernações nas melhores livrarias, geralmente, ao lado dos livros de catequese -, um abridor que imita gemidos sexuais e está pronta a visita.
Eu já suspeitava que o clima que envolve estas lojas demonstra mais a repressão da sexualidade, do que uma suposta liberalidade, mas foi quando resolvi entrar em um sex shop na minha cidade, que a teoria confirmou-se. Caminhava pelo centro, quando me chamou a atenção, na janela do terceiro andar de um edifício comercial, o letreiro que sugeria a existência de um Sex Shop. Resolvi ver como era. Interessante, não era um comércio em uma galeria, com uma porta voltada para a rua, como ocorrem com as bancas de revistas, farmácias, videolocadoras (…) que trabalham com os mesmos objetos.
Quando chego ao local, encontro uma secretaria em uma antessala minúscula, com ar cerimonioso, pediu-me que eu aguardasse, pois tinha outro comprador na loja. O comentário inoculou-me um constrangimento que não me pertencia. Esperei, fiquei curioso para saber quem era o pecador que sairia da loja. O que era natural, deixou de ser.
Não me lembro da cara do vivente que saiu, mas lembro-me do ar afetado do dono. Tão logo entrei, ele passou a falar dos produtos – os mesmos da farmácia, videolocadora, camelôs – com ar de naturalidade forçada, que paradoxalmente, denunciava o quão pouco natural ele via o seu negócio. Depois falou da preocupação que tinha em manter um ambiente sigiloso para os seus clientes. Neste momento, senti que estava cometendo um delito. A ansiedade que senti associava-se a lembrança do momento que a minha mãe encontrou a revista da Lady Francisco embaixo do meu colchão, no auge dos meus doze anos. Quando ele complementou que eu poderia utilizar o mototaxis para receber encomendas, caso eu não quisesse me expor, senti um medo da polícia que só havia sentido quando dirigi sem carteira aos dezesseis anos. Entrei com a curiosidade e a inocência das verdadeiras virgens e saí como o cafetão culpado e apaixonado descrito pelo Tim Maia.
O local semiclandestino, o ar cerimonioso e a logística do ambiente não eram apenas fruto da mente de um comerciante atrapalhado com a sua sexualidade. Ele refletia os temores, os conflitos e as culpas dos seus clientes. Era isso que criava o clima de conluio entre o comerciante e seus clientes. Os objetos não são perversos, nem o ambiente, é a sexualidade vista como pecaminosa perversão que contamina e incrimina inocentes brinquedos.

Adições e dependências cotidianas

Os transtornos mentais são mais moralizados do que outras patologias. Não se costuma acusar portadores de asma, diabetes, hipotireoidismo pelas suas patologias. Mas não é incomum a associação de Depressão à falta de força de vontade ou de determinação. Os portadores de Transtornos do Pânico são comumente pensados como manipuladores chiliquentos e assim por diante. Mas de todas as patologias mentais, nenhuma é mais moralizada do que a dependência ao álcool e demais drogas. As pessoas portadoras destas patologias são associadas a fraquezas morais, criminalidade, falta de vergonha entre outras moralizações.

Contudo, poucas pessoas não apresentam algum tipo de comportamento que não tenha elementos muito semelhantes às adições clássicas. Todos os que apresentam estas “adições” tem a mesma dificuldade de romper com o comportamento que os adictos às drogas clássicas. Também temos os adictos de drogas lícitas que moralizam os adictos a drogas ilícitas, como se o problemas fosse diferente. Assim não é incomum um pai dependente de álcool e uma mãe dependente de nicotina esbravejarem sobre a fraqueza do filho frente à cocaína. Não, não estou igualando as drogas e seus impactos, estou igualando a adição e a consequente dependência.

Mas vamos às adições que não são clássicas, mas apresentam mecanismos semelhantes.

Comida, sobrepeso é resultado de uma equação muito simples, é a sobra da ingestão menos o gasto. Pessoas que apresentam um sobrepeso histórico, associados a problemas de saúde, seguem ingerindo mais do que precisam. Elas encontram justificativas, explicações, desculpas, teorias muito semelhantes às desculpas das pessoas dependentes ao álcool, ou a nicotina.

Dinheiro, sim, dinheiro é bom, como chocolate e vinho, e assim como estes, a forma como a pessoa tenta acumulá-lo pode estar dentro de um modelo adicto. Um exemplo, algumas pessoas fazem uma reserva de dinheiro para situações de emergência. Com o passar do tempo precisam acumular mais e mais. Quando por ventura, ou desventura, precisam utilizar parte da sua reserva, ficam ansiosas. Repetem apavoradas que estão usando o dinheiro da reserva de emergência, como se estivessem em um estado de abstinência.

Procedimentos estéticos. Começa com a orelha de abano, passa pelo nariz, uma prótese mamária, uma lipo que é uma imposição da idade. Alguns implantes, drenagens. Cremes de placenta, de vinho, de gordura de foca, de urina de elefantas albinas, de pasta de fígado de galos hermafroditas (…).

Compra de roupas e utensílios. Aquele vestido impagável, mas financiável, que nunca foi usado, assim como com várias bolsas, sapatos. A propina dada à balconista para avisar tão logo chegar a nova coleção, lembra a cumplicidade com o garçom que oferece uma dose extra, ou o mototaxista que traz droga.

Economizar. Não é a mesma adição que guardar o dinheiro. Estas pessoas buscam ter a sensação que estão ganhando alguma coisa. São os centavos mais baratos no litro da gasolina, que obviamente não compensa a distância. As roupas, a comida, os lugares, obviamente, não são iguais, mas nega-se isso, como se nega que a ressaca é proveniente do porre de ontem. O que vale é a ideia que se está pagando menos e levando uma vantagem. O prazer está na vantagem. Estas pessoas muitas vezes ficam obcecadas e não conseguem enxergar o que perdem com a sua adição à pechincha.

Seduzir. Nunca é suficiente ter alguém, sentir-se bem. Algumas pessoas buscam novas conquistas, o prazer está aí, muitas vezes não sabem o que fazer com a ressaca da conquista. Elas não querem perder a relação que tem, mas continuam a se expor.

Corrupção. Claro que o movimento inicial está associado à obtenção de vantagens financeiras e de poder. Contudo, estas pessoas, algumas bastante inteligentes, seguem no “negócio” apesar de tornarem-se milionárias. Muitas poderiam parar com o que conseguiram, mas elas precisam da adrenalina, desenvolvem tolerância e, como outros dependentes negam o problema, acham que não vão ser descobertas.

Jogo, atividade física, exposição a risco, automutilação, trabalho, sexo entre outros também estão associados a comportamentos adictos. Para caracterizá-los, eles precisam ser abusivos; ter uma necessidade cada vez maior de uso; as pessoas ficam com discurso empobrecido, monotemática, falam muito sobre a adição em questão; sentem-se ansiosas quando impedidas, ou impossibilitadas, de repetir o comportamento; sentem alívio quando voltam a repetir a conduta; se conseguem interromper o uso, apresentam um risco maior de recaída.

Os elementos emocionais – sejam carências ou traumas -, bem como os elementos biológicos – com suas predisposições genéticas – e os ambientais não são tão diferentes nos diversos tipos de adições. Creio que ninguém está imune a desenvolver comportamentos adictos. Se conseguirmos entender isso, poderemos ser mais empáticos – que não é a mesma coisa que complacente – na abordagem das diversas adições. Ad nauseam, cito Terêncio: sou homem, nada do que é humano me é estranho.

Reputação

José e Marta consideram a REPUTAÇÃO o seu bem mais precioso. A comparação com o comportamento alheio era a forma de marcar a diferença entre eles e as demais pessoas. Pensavam a REPUTAÇÃO como um cofre que tudo guarda. Um dia brigaram e abriram o cofre.

Enciumado, José começou:

– Você já foi mais cuidadosa com a tua REPUTAÇÃO!

– RÉ, PUTA AÇÃO. Votaram teus delírios Zé.

– Não, voltou a tua rePUTA AÇÃO.

– REPUTA AÇÃO, poderia ser o teu codinome.

– Não, REPUTAção que é tua nova velha profissão.

– Estás confuso, esta rePUTAÇÃO não me pertence. RE PUTAção era como chamavam a Renilda, se é que lembras o verdadeiro nome da tua irmã?!

– Já Rosemary, aquela tua tia, era uma rePUTAÇAo influente.

– Nunca quis falar sobre isso, mas teria a tua homofobia relação com o fato de teres um irmão rePUTaçÃO?

– Que REputAÇÃO? Esqueceu que quando a tua família precisou de rePutaçÃO pediu ajuda a ele. Alias, não pagaram até hoje.

– Agora você apelou, deu, rePuTação saudações.

– Eu não acredito que você desceu a esse nível, vais usar a história dos envelopes contra mim. Você quer me destruir!

– Você está realmente louco, esqueceu até que foi operador de telégrafo. Eu não sou uma Nicéia. A expressão dos envelopes era: rePuTação, saudações.

– Eu ti amo! Cálice e brindemos.

– Ah, você é meu Chico Buarque, mas prefiro repuTAÇAo.

Disturbing, a palavra que descobri em Auschwitz

Há 13 anos, inclui a Polônia em uma viagem. Passei por Cracovia e Varsóvia. A minha avó paterna era de descendência polonesa, cresci em meio aos “polacos do Paraná”. Próximo ao bairro no qual morei em Ponta Grossa havia uma colônia de poloneses, não era incomum vê-los com suas carroças, vestimentas, além de escutá-los falando polonês, ou com característico sotaque. Além disso, quase todos os ascendentes maternos dos meus filhos eram judeus de origem polonesa.

Fiz uma viagem noturna de trem entre Praga e Cracovia. A primeira sensação que experimentei na Polônia foi o hálito etílico que impregnava a estação, com várias pessoas pernoitando no local. Coloquei as bagagens em um guarda-volumes, peguei um táxi e fui a Auschwitz. O taxista usava umas cinco expressões em inglês, entendeu o que eu queria, no caminho, obviamente, falou do papa conterrâneo, mostrou o parque onde ele rezara uma missa para centena de milhares de pessoas. Cheguei a Auschwitz bem cedo. O próprio taxista comprou o ticket de entrada e aguardaria para levar-me de volta.

Antes de entrar no portão, com a cínica expressão “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”), li o folder na versão inglesa, entre outras coisas, chamou-me a atenção uma frase que dizia mais ou menos assim: esta experiência pode ser “disturbing” para algumas pessoas. Eu já devia ter lido várias vezes este termo, é comumente utilizado na área psi, mas nunca tinha detido-me nele, pensei que nenhuma tradução para o português contemplaria a força e a vitalidade do inglês disturbing.

Não precisei chegar a câmara de gás, tampouco aos barracões de madeira – onde judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, entre outros, dormiam como animais -, para entender e sentir o porquê da expressão “disturbing” no folder. Foi quando me deparei com uma gama enorme de objetos infantis – bonecas, outros brinquedos, sapatos, aparelhos ortopédicos, (…) -, além de uma enorme vitrine com amostra de cabelos cortados dos prisioneiros, antes de serem encaminhados à câmara de gás. Claro que não é preciso ter filhos que, dentro de um constructo cultural/religioso, seriam considerados judeus, para sentir esta experiência como “disturbing”. Contudo, estímulos mais próximos ao umbigo são narcisicamente mais efetivo para acionar identificações/empatia. O nó na garganta, uma vontade de chorar e a lembrança obsessiva dos filhos acompanharam-me até a visita à câmara de gás.

Quando volto a encontrar o taxista polaco, ele pergunta-me se um casal de americanos poderia voltar conosco. Eles deviam ter em torno de 60 anos, talvez tivessem nascido na América do pós-guerra imediato, tinham ascendência judaica. O marido ficou silencioso a maior parte do tempo, dentro da limitação do meu inglês macarrônico, conversei com a senhora.

Não identifiquei nenhum sinal que a experiência da visita tivesse sido “disturbing” para o casal, quando falou-se sobre a origem judaica deles, ela respondeu algo como: somos americanos! Como se existisse uma nova divisão no tempo, em que o passado dos ancestrais tivesse ficado isolado, ou melhor, dissociado. A cada fala minha, ele fazia uma correção linguística. Eu não sentia como deselegante, mas era alguém que estava conectada com o formal do discurso. Assim como a visita à Auschwitz, era uma visita formal, a um ponto turístico. Fantasiei que uma visita ao Reina Sofia, para ver a Guernica de Picasso, talvez mobiliza-se mais exteriorização de afeto do que a recente visita ao campo de concentração.

Não, não estou fazendo juízo de valor sobre a forma como o casal de origem judaica experimentou a visita a Auschwitz. Pelo contrário, a reação aparentemente asséptica, inodora, pode ser resultado da experiência “disturbing” pela qual passou o casal ao visitar o local, ou mesmo, dos pais e demais familiares do casal, que provavelmente tenham vivido de maneira muito mais próxima os horrores da guerra. O congelamento – ou seria a anestesia – afetivo é uma forma de lidar com a dor. Ela protege, mas imobiliza, com isso perde-se a capacidade de sentir e reagir. Isso ocorre com situações traumáticas, como no caso do holocausto. Mas, também, nos pequenos “traumas” do dia a dia: um olhar não correspondido, a viagem da filha, a morte do cão de estimação, a descoberta de uma doença que necessitará tratamento contínuo (…).

Voltei de Auschwitz impregnado com o significado e o significante “disturbing”. Foi como se encontrasse a palavra e a experiência adequadas para nomear outras vivências e suas consequências. A vida é disturbing. Percebo que muitos pacientes, quando integram suas vivências disturbing às demais lembranças/vivências, libertam-se, é como se cada um tivesse o seu 27 de janeiro de 1945.