Antes e depois de 29/02/1976

Convivi com meu pai em 10 dos seus 32 anos de vida. Hoje, faz 44 anos da sua morte. O que não impede que meu diálogo com ele siga vivo, intenso e, provavelmente, mais loquaz do que se aqui ele estivesse.
Na presente semana, foi dele que lembrei ao receber a notícia que seu segundo(a) bisneto(a) está por chegar. E que no auge de seus 76 anos, ele ainda poderia vir a acompanhá-lo(a) à uma praça.
Foi dele que lembrei quando soube da morte de Vadir Espinosa, técnico que tirou nosso Botafogo da fila. Não tivemos (como tantas outras coisas) a satisfação de comemorar um título juntos. Quando não se tem títulos, as derrotas preenchem o vazio. Tenho o cuidado de manter intacta a lembrança do quão triste ficamos ao ser desclassificado pelo Colo-Colo na Libertadores de 1973, um 3 a 3 em Santiago, com o empate chilenos nos últimos minutos e atuação memorável do paranaense Dirceu.
Ele estava presente em minha mente quando eu escutava a paciente a falar da dolorosa perda que tivera na semana. Afinal, aniversários de perdas, não raro, são vividas revivências.
Ontem, eu um pequeno intervalo, sem entender o porquê, lembrei-me de uma notícia que li há dois meses, sobre a morte de uma pessoa de outro país, na época fiquei em dúvida se ele era quem eu tive um pequeno contato há 30 anos, mas que foi uma pessoa importante na formação de um colega. Não conversava com o colega há meses; mas, num soluço, mandei-lhe uma mensagem para perguntar se fora seu orientador que faleceu. Chegamos à conclusão que sim. No final da conversa, lhe informei que agora tinha entendido o motivo da minha mensagem. Citando que amanhã faria aniversário da morte do meu pai. Com o que ele concluiu: sim, na época, ele foi como um pai para mim.
Ao longo da semana, me peguei recaindo no ato de ironizar quando irritado. Brinco que sou um irônico em abstinência, só por mais um dia. Mas, às vezes, não completo as 24 horas. Durante anos, eu pensava minha ironia como algo sofisticado; interpretava que meu pai era uma pessoa irônica e, assim, eu o acompanhava. Passadas algumas décadas, ressignifiquei as lembranças. Meu pai, em condições muito especiais, rompia com seu silêncio e tornava-se uma pessoa divertida, com sacadas rápidas, um tanto quanto debochadas; porém, leves. Não continha a agressividade excessiva e, muitas vezes, covarde da minha ironia. Foi a partir desse insight que tento moderar o uso da ironia. Após, reler meu comentário irônico, pensei: não, não é assim… meu pai ficaria em silêncio.
É difícil precisar o que são inferências e criações minhas a partir do esboço da nossa relação e o que eram de fato características dele. Mas é assim que seguimos vivos na nossa relação.
P.S. Enquanto escrevia, minha esposa reclamou do meu desligamento, silêncio e pouca colaborações com o almoço em família, algo que está longe de ser bissexto. Geralmente, quando isso acontece é porque estou em longo e profundo diálogo.

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 02/03/2020, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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