Arquivo mensal: fevereiro 2021

Este Homem e as Mentiras Compostas de Verdades

É clássica! Quem assistiu nunca esquece. Considerada umas das 100 melhores propagandas do século.

Um fundo preto com pontos brancos dá início à peça publicitária, um locutor em tom sóbrio começa a narrativa:

“Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao seu povo.

Em seus quatro primeiros anos de governo, o número de desempregados caiu de 6 milhões para 900 mil pessoas.

Este homem fez o produto interno bruto crescer 102% e a renda per capita dobrar.

Aumentou os lucros das empresas de 175 milhões para 5 bilhões de marcos e reduziu a hiperinflação a no máximo 25% ao ano.

Este homem adorava música e pintura e quando jovem imaginava seguir a carreira artística.”

Nesse momento, a imagem de Hitler se forma no fundo. Agora, com a tela toda preta, a locução termina:

“É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade.

Por isso é preciso tomar muito cuidado com a informação (…)”

O texto não precisou citar o número de mortos e as cicatrizes que ele deixou na humanidade.

Eu poderia terminar aqui. Não precisa desenhar. Mas não consigo. Não vou falar das fake news. Mas, das verdades fatiadas, descontextualizadas, mal interpretada (…) costuradas com uma boa vontade bovina e uma maldade utilitarista. Da necessidade de inimigo que precisa ser destruído. De um populismo que certamente não é pior dos que o antecederam; tampouco, melhor!

Ainda bem que tudo isso é passado!

*A propaganda é da Folha, que fez 100 anos na presente semana; idealizada pela W/GGK de Washington Olivetto, tendo como redator Nizan Guanaes

Metamorfopsia!

O palavrão é o nome de um sintoma residual que ainda me acompanha após a cirurgia pelo descolamento da retina, resultado de um acúmulo de líquido de 25 micras (um micra é a milésima parte do milímetro) atrás da mácula.

Enxergam-se as letras e outras coisas de forma distorcida, com curvas. Como benefício secundário, quando atendo online, e olho para o canto, vejo minha imagem com o rosto afinado de 15 anos atrás.

É interessante que logo após a cirurgia, quando recuperei completamente o campo visual que estava a perder, não atentava a este sintoma. O alívio pela recuperação não permitia tais luxos; evidentemente, a distorção ali estava, e em maior intensidade; mas, ao diminuir a perseguição castratória, volta-se a ficar mais exigente e desconfortável com bem menos. No fundo, é algo perfeitamente administrável, poderia viver com a dificuldade de definir se digitei dois pontos ou ponto e vírgula.

Hoje, ao descrever o sintoma para amigos, associei que talvez Edvard Munch, pintor norueguês, pudesse tê-lo, ou, ao menos, ter tido, gerando uma experiência para a construção de algumas de suas obras.

Besteira! Ao procurar informações, me deparei com tanta desgraceira em sua vida pessoal que, por si só, seriam suficientes para ver o mundo e a si mesmo distorcidos em “O Grito”. Sobre isso, sentenciou: “Eu herdei dois dos inimigos mais terríveis da humanidade – a herança da doença e da insanidade”,

Interessante, as dificuldades foram matéria prima para sua obra fabulosa; já, Hitler tinha horror da mesma, considerava-a “degenerada” e removeu 82 peças de Munch dos museus alemães. E com sua “sensibilidade e capacidade artística”, sobre Munch, com arrogância dos ignorantes, proferiu: “Por tudo que nos importamos, os bárbaros da pré-história da Idade da Pedra e os gângsteres da arte podem voltar às cavernas de seus ancestrais e aí podem aplicar seus primitivos desenhos”.

Estaria minha metamorfopsia distorcendo minha percepção ao ponto de achar que o vírus do autoritarismo, da barbárie, da pobreza interpretativa e da falta de empatia não são plenamente eliminados? Permaneceriam eles incubados, mantendo a possibilidade de reaparecerem em ambientes propícios?

Denegrir, Judiar e Escravos

A primeira era uma palavra que fazia parte do meu vocabulário no dia a dia. Há pouco, me deparei com ela em um manifesto que fui o principal redator. Apesar de passar pela revisão de vários, me senti envergonhado. Simplesmente, ou seria simplista, não me atinha a origem literal do sentido figurado.

Não, não me considero racista por até há pouco usar uma palavra de cunho racista. Apesar de saber que para o inconsciente essa negativa não existe. Entretanto, evidentemente, ela é a expressão do racismo estrutural do ambiente no qual vivi(o). Na escrita, por passar por um processo reflexivo maior, não utilizo mais o termo. Mas, ainda, em situações de relaxamento, eventualmente, me pego falando. O processo de desconstrução da herança escravagista é longo.

Penso que seria injusto comigo que ao se depararem com o uso passado do termo inferissem que sou racista ao invés de simplesmente ignorante. Por outro lado, quando alguém toma consciência da origem da palavra e a utiliza, negando o direito da subjetividade de quem se sente ofendido, parece apontar para uma arrogante prepotência.

Judiar, judiaria, judiação (…) não são palavras que utilizo. Semelhantemente, elas têm uma origem antissemita. Judiação é largamente utilizada pela minha mãe e pelos familiares que a cercam. Nem de longe, ela tem consciência da origem problemática do termo. Tampouco, bagagem sociocultural para entender (e já passou do tempo/condição de aprender) que o termo poderia ser ofensivo para os que acreditam no constructo que inclui parte dos netos dela como judeus.

Acusá-la de antissemita pelo uso da palavra carregaria uma violência desmedida. O processo demorará algumas gerações para que a cultura/sociedade tenha uma compreensão pela maioria; não será com novas humilhações/opressões que resolveremos estes problemas.

Por outro lado, comunicadores, formadores de opinião, educadores, políticos (…) não podem usufruir da mesma compreensão/complacência. Eles precisarão mudar, evoluir, aprender e desculpar-se quando erram. Como foi o caso do narrador (ex-vereador) que com certa desfaçatez se refere a um jogador como “aquele crioulinho”. Contextualizações sem pedidos inequívocos de desculpas nada mais são do que arrogantes exigências de privilégios à custa da dor alheia.

Uma outra conversa são as releituras (condenações) de obras do passado à luz do presente, como o que ocorre com parte da obra de Monteiro Lobato ou com a estrofe “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo” do Hino Rio-grandense.