Gentileza anônima

Desde que estou usando muletas, por conta do rompimento do meu tendão de Aquiles e da consequente cirurgia reparadora, já escrevi sobre a dolorosa descoberta das dificuldades enfrentadas pelas pessoas que estão nesta situação. Também escrevi sobre a atenção e disponibilidade afetiva dos meus familiares, o carinho dos meus amigos e a competência dos profissionais da saúde no cuidado para comigo.

Quase todas estas pessoas já eram das minhas relações, já estávamos envolvidos por laços de afetos, o que não diminuem em nada a importância e o valor da generosidade de todos. Mas não posso dizer que seja surpreendente. Mas esta condição evoca outro tipo de gentileza, a de pessoas anônimas, desconhecidas, que eu não sei quem são e, tampouco, elas sabem quem sou eu. Constatar e usufruir deste tipo de atenção tem sido muito legal.

Quem usa muletas nem sempre pode passar na faixa de segurança, às vezes elas ficam distantes, também não tem velocidade para atravessar sem afetar o transito. Nem todos estão atentos, mas muitos param e possibilitam que você passe.

O garçom que se dispõe a servir o teu prato no restaurante self service. Pessoas que se oferecem para carregar uma sacola, para ajudá-lo a subir o degrau da calçada.

Um senhor acompanhou-me na padaria, segurou a sesta, esperou eu pagar, acompanhou-me até o carro, para só depois voltar para fazer as suas compras. O fez com tanta disponibilidade e naturalidade que seria indelicado não aceitar.

O barbeiro que me recebe e sai para providenciar o pagamento do estacionamento rotativo. O vigia do shopping que se oferece para buscar uma cadeira. O porteiro que segura o guarda-chuva enquanto atravesso a rua.

O garagista que muda a rotina para facilitar a minha movimentação. As delicadas perguntas: sobre a evolução, quanto tempo seguirei utilizando muletas ou se não tenho dor.

A lista é extensa, estas pessoas têm incomum o fato de olharem para ti e naturalmente colorarem-se no teu lugar e, assim, empaticamente transbordam a sua gentileza.

Há alguns meses, citei a gentileza que caracterizava meu cunhado Giovane, naquele post, escrevi que esta era uma qualidade que eu passei a almejar, mas não me sentia possuidor. Não que eu me considere um grosseiro desgovernado. Simplesmente, não tenho os atributos essenciais.

No mínimo, duas características me impedem de ser uma pessoa naturalmente gentil. A primeira, é que sou desatento, quando caminho pela rua, mergulho nos meus pensamentos, dialogo comigo, torno-me autocentrado. Não é incomum passar por alguém, olhá-lo, mas não enxergar, não raro, alguns segundos depois, viro-me, porém, é tarde para um cumprimento.

Às vezes, após entrar no elevador, tenho que voltar para cumprimentar o porteiro, pelo qual passei como se ele ali não estivesse. Não mudarei esta característica, em parte porque talvez não consiga, mas, principalmente, por não tentar, pois este fantasiar, pensar, devanear em quanto caminho, é necessário para a manutenção da minha saúde mental. Por exemplo, quando corro – ou melhor, corria – eu nunca escuto música, a minha conexão é com o interior.

O segundo motivo é a preocupação de parecer/ser invasivo. Ela foi acentuada por uma característica da profissão, analistas não devem antecipar-se, propor antes de (…). Além disso, por conviver com as mulheres da minha família, que se sentem autorizadas a serem apóstolas, além fronteiras, de suas convicções/crenças, desenvolvi defesas mais rígidas contra invasões, entre elas, evitar ser invasivo, para não convidar a invasão. Aqui tem uma força excessiva, de origem neurótica.

A maioria das pessoas gentis com a minha situação não eram invasivas, eram só gentis, não tendiam a imposições. Aceitavam com um natural sorriso – de missão cumprida – quando eu agradecia. Na verdade, a gentileza é a oferta, não é o carregar a sacola. O presente é a disponibilidade afetiva e ela não deve ser confundida com invasão. A forma de retribuir às gentilezas que recebi neste período é tentar elaborar a minha preocupação neurótica de parecer/ser invasivo.

Nunca terei a naturalidade e espontaneidade da maioria das pessoas, mas sempre podemos melhorar. Paradoxalmente, a minha mãe, Claira, contra quem levantei muros contra invasão, é uma pessoa vista como extremamente gentil. Não foram poucas as noites que pessoas do bairro – muitos desconhecidos – batiam na porta da nossa casa solicitando, com a certeza que seriam atendidas,  ajuda com doentes e grávidas.

Sobre Hemerson Ari Mendes

Psicanalista (Sociedade Psicanalítica de Pelotas – Febrapsi - IPA), médico psiquiatra (UFPel), mestre em saúde e comportamento (UCPel). É diretor da Clínica Ser e durante 18 anos foi professor de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina UCPel, atualmente, licenciado. Sim, também, disgráfico.

Publicado em 16/09/2014, em Psicanálise e psiquiatria. Adicione o link aos favoritos. 1 comentário.

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